O pecado como chave de compreensão da condição humana
No mundo contemporâneo não é tarefa fácil usar um conceito teológico e antigo para tentar dar conta da condição humana. O politicamente correto aliado à imaginação terapêutica criaram uma blindagem no ser humano de modo que só conseguimos explicar a razão para o mal na sociedade fazendo uso de diagnósticos superficiais, tais como: o problema de base da humanidade se explica na luta de classes e na má distribuição de renda; ou ainda, nas questões do passado do indivíduo, uma vez que não foi amado por seu pai.
Fruto da era terapêutica da sociedade, Sigmund Freud, o pai da psicanálise, escreveu um importante trabalho “O mal estar na civilização” onde tenta dar conta da situação de ódio e rivalidade na sociedade. Ateu confesso e filho do Iluminismo, buscou na ciência (aliando a visão cristã de mundo) a resposta que todos procuravam em seu momento histórico. Não conseguiu ir muito longe.
Desde a Revolução Francesa quando a religião cristã perdeu o centro de legitimação dos valores morais e deu lugar ao conceito ateu de Estado que muitos chamam de laico, que as ideologias assumiram o espaço público e passou a ditar as regras do jogo social. Foi Raymond Aron, sociólogo marxista francês, em seu importante livro “O ópio dos intelectuais” quem afirmou, de maneira contundente e corajosa, que o vácuo deixado pela religião cristã abriu caminho para que as ideologias assumissem tal espaço; mas, perceba o detalhe, carregando em si a mesma força da religião. Esta é a razão das ideologias no mundo ocidental moderno possuírem a capacidade de mover as pessoas para tomarem esta ou aquela decisão. Basta observar a maneira como Karl Marx analisa a história se não é uma proposta de secularização da escatologia cristã. Ou seja, é quase desonesto intentar fazer uma leitura de mundo fazendo uso de uma cosmovisão, no caso a cristã, mudando alguns termos e, no final das contas, reclamar originalidade e cobrar pelos direitos autorais.
Foi o próprio cristianismo quem emprestou para os grandes pensadores ocidentais o arcabouço necessário para construírem o seu edifício conceitual. Um importante pensador, o galês Christopher Dawson, em seu importante texto “Progresso e Religião”, analisa a razão para a degradação do mundo moderno. Na verdade, ele considera que a sociedade ocidental ainda não conseguiu se entender na modernidade. Uma vez que ela, a modernidade, traz em seu âmago uma profunda desconfiança para com Deus e a religião, qualquer assunto que diga respeito a algum de tais elementos é considerado medieval e obscurantista. O progresso, tendo como frutos a ciência e a tecnologia, portanto, é a religião do momento.
Acredito que seja uma forma de ideologia, porquanto idólatra. Para Dawson, o ocidente tem pago o preço da coisificação do ser humano. Ele tornou-se apenas uma engrenagem na grande máquina do progresso. Assim, tendo em vista este quadro acredito que seja oportuna uma reflexão da condição humana a partir de outra lente. A hiper modernidade ou modernidade líquida proporciona uma reflexão a partir de matrizes religiosas e teológicas uma vez que a própria ciência moderna foi posta em dúvida. Não a ciência enquanto veículo de “exploração” e entendimento do mundo; e sim, como uma substituta da religião.
Esta reflexão, então, é uma proposta alternativa de leitura do ser humano. Vamos privilegiar, portanto, o conceito de pecado conforme o cristianismo e a consequente filosofia antiga e moderna desenvolveram. Santo Agostinho, que viveu entre os Séculos 4 e 5 da era cristã, foi talvez o primeiro filósofo a inserir no mundo ocidental a ideia de pecado como sendo uma lente para compreender o comportamento do ser humano. Isto é, foi o pensador africano quem ampliou a dimensão de um conceito, a principio teológico, para utiliza-lo no espaço público. Ele mesmo se expressa da seguinte maneira em suas Confissões:
"Ouve, ó Deus. Ai do pecado do homem! Assim diz o homem, e tu te compadeces dele, pois tu o criaste, mas nele não criaste o pecado. Quem me lembra dos pecados da minha infância? Pois a teus olhos não há ninguém livre do pecado, nem mesmo o recém-nascido que viveu um dia nesta terra.” (Agostinho, 18).
Muitos estudiosos o consideram o pai da Psicologia pois foi o primeiro a exercitar a leitura da psiquê. Ao olhar para dentro de si mesmo, Agostinho conseguiu observar o nascedouro do pecado humano. Esta prática se deu após a sua conversão ao cristianismo motivada pela leitura do Livro de Romanos:
“Vou agora rememorar meu passado desonesto e a corrupção carnal de minha alma: não porque eu gosto dele, mas para que possa amar-te, ó meu Deus. Por amor a ti é que o faço: examinando meus perversos caminhos provo a própria amargura da rememoração, para que tu possas tornar-te doce para mim (tu que és doçura que nunca falha, doçura abençoada e garantida); juntando novamente forças para sair daquela libertinagem, onde me encontrava dilacerado, enquanto me afastava de ti, o único Bem, eu me perdia em meio a um turbilhão de coisas a meu redor.” (Ibid, 34).
O filósofo africano destaca agora o que para ele seria a razão de sua vida desregrada:
“Pois antes, na minha juventude, até ansiei com ardor envolver-me em atividades infernais; ousei fazer novas loucuras, com amores escusos: minha beleza se consumia, e aos teus olhos eu era repugnante. Agradava a mim mesmo e só queria agradar aos olhos dos homens.” (Ibid, 34).
Para Santo Agostinho, então, o pecado nasce da decisão humana de viver em autonomia do Criador para se lançar nos braços da sociedade e de si mesmo. Ou seja, a vida deixa de ser Teo-referente para se tornar Antropo-referente. Bem depois de Agostinho, já no século XIX, surgiu outro filósofo, desta vez um luterano dinamarquês de nome Soren Kierkegaard, a fazer uso do pecado para analisar a condição humana. Em seu livro seminal, O Desespero Humano, Kierkegaard define o pecado como sendo a doença do eu. Para ele, portanto, o pecado foi o responsável por causar uma fissura na alma do ser humano. A partir de tal doença a alma passa a desenvolver os diversos vícios que vemos presentes em nosso cotidiano:
“Pecamos quando, frente a Deus ou da ideia de Deus, desesperados, não queremos, ou queremos ser nós mesmos. Desse modo, o pecado é fraqueza ou desafio elevados à suprema potência.
Portanto, é condensação do desespero. O acento recai aqui sobre estar ‘perante' Deus ou ter a ideia de Deus. Isso faz do pecado aquilo que os juristas chamam ‘desespero qualificado’. Sua natureza dialética, ética, religiosa, é a ideia de Deus.” (Kierkegaard, 73).
O filósofo dinamarquês articulou uma estreita relação entre pecado e desespero. Por estar em pecado e, ao olhar para si, o ser humano percebe o seu estado. Daí resultam duas opções: tentar sair de si para ser outro ou, de maneira arrogante, continuar sendo o que se é mesmo sabendo do seu estado. É por isso que o pecado, segundo Kierkegaard, resulta em desespero.
Porquanto o ser humano, ao perceber seu estado, não se volta para o único capaz de salvá-lo, Deus. Assim, o crer se torna fundamental no processo de cura do eu humano:
“A definição da fé pela qual me guio em todo este escrito, como por uma segura bóia. Então, crer, é: sendo nós mesmos e querendo sê-lo, mergulhar em Deus por intermédio da sua própria transparência. No entanto demasiadas vezes se esquece que o contrário do pecado de modo algum é virtude. Antes, esse é um ponto de vista pagão, que se contenta com uma medida puramente humana, ignorando o que é o pecado e que ele está sempre perante Deus. Não, o contrário do pecado é a fé. Como o diz a epístola aos Romanos 14:23:
‘Tudo o que não procede da fé é pecado’. Uma das definições capitais do cristianismo é que o contrário do pecado não é a virtude, mas, sim, a fé.” (Ibid, 78).
O conceito de pecado é para mim bastante envolvente por situar de maneira dupla a causa do mal estar da civilização: no indivíduo e na sociedade ao mesmo tempo. Uma decisão existencial e moral estão, portanto, na raiz que deu “origem” ao mal. A tradição cristã, grosso modo, atribui aos personagens bíblicos Adão e Eva a responsabilidade para a tragédia humana. É curioso que o nome Adão signifique Indivíduo e Humanidade. Ou seja, o indivíduo Adão era também o representante da raça humana. A ideia de solidariedade humana nasce de tal narrativa hebraica. O pecado, então, passa a ser a forma de explicar a razão para estarmos imersos nesta condição de angústia constante. Ainda citando Soren Kierkegaard, uma vez que o pecado é uma condição de todo o ser humano a angústia e, por conseguinte, o desespero, estão sempre em nosso encalço.
Não posso concluir este texto sem antes citar o pensamento daquele que, para mim, logo mais se tornará um clássico: René Girard. O franco-americano, falecido no final de 2015, foi o criador da teoria mimética. Grosso modo para ele, que adotava o conceito de pecado original conforme o cristianismo enquanto base de seu pensamento, o pecado se alojou na alma humana afetando, portanto, a maneira como desejamos. O desejo foi profundamente manchado pela inveja e pelo ciúme. Tal desejo se alimenta e se baseia no desejo alheio. A articulação do desejo se dá sempre socialmente. Desejamos o que os outros desejam. Isto é, ao querer ter o que é do outro por imaginar que é bom faremos o que for possível, inclusive, gerar a violência. Não é a toa que o Decálogo Hebreu diz expressamente: Não desejam nada o que é do outro! A única maneira, segundo Girard, do ser humano ser liberto do ciclo mimético é por meio do amor cristão. Tal amor se doa ao invés de querer o que pertence ao outro. Ele visa o bem. O amor de Cristo ultrapassa a inveja e o ódio, sentimentos tipicamente humanos.
É certo que existem muitas outras maneiras de tentarmos dar conta do porque do desespero e da violência presentes em todas as culturas. Mas ainda não vi um conceito como o do pecado ir tão fundo nas razões por trás de nossa condição humana.