Quaresma e a igreja cruciforme
“e quem não toma a sua cruz e não me segue, não é digno de mim” (Mt 10.38).
A igreja de Jesus Cristo é chamada a viver conformando-se à cruz. Não há outra maneira de responder ao Evangelho e permanecer fiel à sua vocação, se não, vivendo a realidade da cruz. Por mais estranho que possa parecer, a mensagem da cruz não é bem-vinda nesses nossos dias. Vivemos tempos do Evangelho do bem-estar. Tudo o que a maioria das pessoas buscam em uma comunidade, autodenominada cristã, e o que muitas dessas tem a oferecer, é uma mensagem de conforto, saúde, prosperidade material, desenvolvimento das potencialidades humanas e sucesso. Os templos, se é que ainda podemos chamar assim, os lugares onde os cultos se realizam são projetados para que o máximo conforto e o inebriamento tecnológico sejam possíveis. As liturgias, se é que existem, são planejados para o gozo, o desfrute e o contentamento dos ‘adoradores’. Por isso temos uma geração inteira de cristãos que entendem a salvação em termos de felicidade pessoal, humana, horizontal, com base nas coisas que podem ser tangíveis e mensuradas aqui e agora. Salvação e estar de bem com a vida se tornaram sinônimos.
Entretanto, nada mais falso e fraudulento do que esse Evangelho ‘coach’ e essa igreja centrada nos desejos humanos. A quaresma nos reposiciona e nos coloca no caminho da cruz, cujas pegadas de Jesus indicam o caminho a seguir. A igreja deve viver ‘sub cruce’ e ‘in cruce’, isto é, sob a cruz (mensagem) e na cruz (sofrendo pelo Evangelho). Viver sob a cruz significa guardar, proteger, ensinar e exortar com integridade o Evangelho. É preciso batalhar pela fé que uma vez por todas foi entregue aos santos e de maneira profética, porém com mansidão e amor, denunciar os evangelhos espúrios, as falsas doutrinas, os falsos mestres. Sem sombra de dúvidas, isso faz a igreja passar por um verdadeiro martírio social, uma comunidade que anda na contramão do mundo e seus desvalores. O Evangelho íntegro é aquele que ordena o arrependimento dos pecadores, convoca os crentes a viverem em contínua mortificação, a uma intensa busca de renúncias, a despirem o velho homem todo o santo dia e a purificação do coração. O Evangelho de Jesus Cristo determina que devemos carregar a cruz a cada dia, conformando-nos a Ele. Isso, é o lado, digamos ‘negativo’ do Evangelho de Deus. O lado positivo é a mensagem de Jesus que nos exorta a amar os irmãos e os inimigos, inclusive, a cultivarmos as virtudes, andar santa e decentemente, a produzir boas obras, a encher-nos do Espírito, a sermos humildes e viver como sal e luz e cultivar comunhão com o Pai por meio da oração, da adoração. Viver na cruz (in Cruce) é encarnar o Evangelho de Cristo nas dores do mundo. A igreja tem como uma de suas essenciais missões, sofrer pelo Evangelho entrando no sofrimento humano. Vale para a comunidade dos discípulos o que disse um dia o sábio Terêncio: ‘Homo sum et humani nihil a me alienum puto’ (sou humano e nada que é humano, me é estranho), a igreja deve participar consciente, intencional e efetivamente das desventuras, das dores, das alienações dos demais homens. Deve fazer-se próxima, demonstrar empatia, compaixão. O Evangelho nos empurra para as periferias existenciais, nos conduz ao encontro das misérias humanas e nos força a sair da nossa torre de marfim aburguesada e ensimesmada. Viver na cruz é dar à mensagem do Evangelho essa dimensão ‘encarnacional’ que ilumina, liberta e transforma a vida humana em sua totalidade. Não se trata apenas da salvação da alma, mas de uma salvação holística, cósmica, fazendo a graça e o poder do Evangelho penetrar cada centímetro quadrado do domínio humano da natureza e que tudo seja submetido ao amoroso senhorio de Jesus Cristo. Ao mesmo tempo, a quaresma nos lembra que o sofrimento pessoal pelo Evangelho, por Jesus Cristo, é uma graça: “pois a vocês foi dado o privilégio de, não apenas crer em Cristo, mas também de sofrer por ele, já que estão passando pelo mesmo combate que me viram enfrentar e agora ouvem que ainda enfrento” (Fp 1.29,30). Mas, a provação em si, também faz parte de nosso crescimento e de nossa maturidade: “Lembre-se de como o Senhor, o seu Deus, os conduziu por todo caminho no deserto, durante estes quarenta anos, para humilhá-los e pô-los à prova, a fim de conhecer suas intenções, se iriam obedecer aos seus mandamentos ou não. Assim, ele os humilhou e os deixou passar fome. Mas depois os sustentou com maná, que nem vocês nem os seus antepassados conheciam, para mostrar-lhe que nem só de pão viverá o homem, mas de toda palavra que procede da boca do Senhor. As roupas de vocês não se gastaram e os seus pés não incharam durante esses quarenta anos. Saibam, pois, em seu coração que, assim como um homem disciplina o seu filho, da mesma forma o Senhor, o seu Deus, os disciplina” (Dt 8.2-5) e mais: “Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações, pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança. E a perseverança deve ter ação completa, a fim de que vocês sejam maduros e íntegros, sem lhes faltar coisa alguma” (Tg 1.2-4). Aproveite esse tempo quaresmal para aprender a viver centrado na cruz e em sua mensagem, não há outro Evangelho para a igreja e o mundo.
Reverendo Luiz Fernando é Ministro Presbiteriano em Itapira