Um Natal extraordinariamente ordinário
“Vejam! A virgem ficará grávida! Ela dará à luz um filho, e o chamarão Emanuel, que significa ‘Deus conosco’.”
– Mt 1.23 (cf. Is 7.14)
Sem a menor sombra de dúvida, este é o Natal mais atípico que temos passado na última década, possivelmente em toda nossa vida. Não me lembro de ter deixado de encontrar meus familiares nessa época do ano a não ser quando morava fora do país, e é certo que entraremos em 2021 com expectativas não tão promissoras como estávamos acostumados. “Adeus ano velho” muitos cantarão com toda sinceridade, mas talvez até ignorem o “muito dinheiro no bolso, saúde para dar e vender”…
Agora que já cumprimos as quatro semanas do Advento, fomos lembrados do verdadeiro sentido do nascimento de Jesus: ele é o grande Salvador de quem todos nós precisávamos, aquele que veio revelar definitivamente a gloriosa graça de Deus, dando sentido à nossa história. Contudo, será que as circunstâncias pelas quais temos passado não argumentam contra a mensagem de esperança que o Natal nos propõe? O que essa data tem a nos dizer nessa longa pandemia? Faz sentido celebrar o nascimento do grande Rei do cosmo quando podemos ceiar alegremente com os todos os nossos familiares e amigos ao redor da mesa, sem máscaras, mas pode ser completa a celebração quando um vírus impõe sérias limitações a isso?
Embora o Natal tenha se tornado uma data atrelada à fartura – com peru, chester, pernil e, obviamente, muita uva passa –, o próprio “aniversariante” acharia essa ideia um tanto estranha. (É claro que o Natal não é o “aniversário” de Jesus, mas deixemos assim para facilitar a reflexão.) O Evangelho de Lucas nos apresenta o nascimento de Jesus em um tom bastante jubiloso, com cânticos permeando todos os relatos até o início de seu ministério messiânico, mas esse não é o caso com Mateus. No livro que abre o Novo Testamento, o nascimento e a infância de Jesus são cercados de tragédias e eventos calamitosos. Enquanto Lucas quis dizer que Jesus era o Senhor triunfante infinitamente superior a César, Mateus decidiu enfatizar um outro aspecto da missão de Jesus: apesar de cumprir as promessas de Deus acerca da restauração de seu povo, o Messias enfrentou oposição desde o princípio.
Consequentemente, ao mesmo tempo em que lemos a respeito da maravilhosa visita dos magos que vêm de longe para reconhecer a glória de Jesus (cf. Mt 2.1-12) o homem mais poderoso da região – Herodes o Grande – trama assassinar o menino. Para começo de conversa, então, Jesus nasce como alguém “procurado pela polícia”, representando uma ameaça à estabilidade do status quo. E, desde o momento em que saiu da barriga de sua mãe, ele teve de aprender a ficar “na dele”, escondido, quieto, isolado.
Além disso, é muito improvável que Jesus tenha tido um aniversário “de verdade” em sua infância, como estamos acostumados hoje – tipo uma versão judaica do primeiro século dessas festas que fazemos com direito a palhaço e show de mágica em buffet infantil. Como se não bastasse nascer onde animais eram alojados à noite (cf. Lc 2.16), o menino Jesus precisou viver como refugiado em uma terra que não somente era estrangeira, como também historicamente inimiga de seu povo: por conta da fúria de Herodes, os pais de Jesus precisaram se mudar com ele ao Egito (cf. Mt 2.13-15). É possível que Jesus sequer tivesse conseguido “cortar um bolinho” com seus melhores amigos em sua casa por algum tempo. Ademais, conquanto não temos fontes históricas que nos levem a essa conclusão, eu não ficaria surpreso de descobrir que Maria teve de adaptar a comida preferida de Jesus nessa data, já que o acesso a ingredientes adequados provavelmente era limitado. (Tendo morado por sete anos no exterior, sei bem o que é fazer “churrasco” sem picanha, fraldinha e linguiça toscana.)
E o que dizer sobre a vida social de Jesus com seus priminhos ou coleguinhas de vilarejo? Na semana em que escrevi esse texto, minha esposa e eu participamos da reunião anual dos pais da escola de nossos filhos, e o assunto que dominou a conversa foi a preocupação com o impacto que a convivência limitada com os coleguinhas de classe causaria nessa geração. Em 2014, quando morei por cinco meses na Alemanha, minha filha de então três anos de idade (o caçula não havia nascido ainda) não conseguiu ter uma interação sequer com outra criança, por conta das barreiras culturais e linguísticas. Ao longo da pandemia que nos acometeu neste ano, meus filhos se frustraram repetidas vezes com a falta de rotina com outras crianças. No Egito, certamente Jesus teria feito novas amizades, uma vez que havia comunidades judaicas bem estabelecidas por lá, mas provavelmente teria experimentado privações semelhantes. Quase certamente teria conhecido seu primo João só de ouvir falar.
Por falar em impactos emocionais e psicológicos, não somente Jesus precisou viver como refugiado em tenha estrangeira, como também todos aqueles que teriam sido seus “parceiros” de vilarejo em Belém vieram a ser assassinados a mando de Herodes (cf. Mt 2.16-18). Se tivesse permanecido vivo em na Judeia, Jesus teria sido o único aluno de sua série na escola – ou o equivalente a isso naquele contexto. E, embora não saibamos como esse evento veio a ser relatado a Jesus – se está registrado em Mateus, é certo que o próprio Jesus conhecia esse fato –, fico a imaginar o que se passou por sua cabeça quando soube que aquela barbárie estava conectada ao seu nascimento.
E, quando finalmente pode voltar à sua terra, após a morte de Herodes, o “novo normal” que Jesus encontrou não foi em Belém, mas, sim, em Nazaré, um lugar sem qualquer significância, a ponto de Natanael eventualmente achar ridícula a ideia de o Messias ter vindo de lá (cf. Jo 1.46). O detalhe é que, segundo Lucas, Nazaré era a cidade onde José vivia antes do nascimento de Jesus (cf. Lc 2.4), mas Mateus explica que a família messiânica acabou se alojando lá porque, embora Herodes tivesse morrido, a ameaça contra Jesus permanecia viva por meio de Arquelau, que passou a governar a Judeia, onde ficava Belém (cf. Mt 2.19-23). Ou seja, Jesus não voltou à sua terra para morar em lugar de prestígio, mas em uma cidade de importância secundária. E, antes de iniciar sua missão, Jesus tinha vivido uma vida tão comum que, lá em Nazaré mesmo, quando ele finalmente revelou ser o Ungido de Deus, o pessoal achou aquilo engraçado: “Não é este o filho de José?” (Lc 4.22). Enquanto sabemos que Jesus é o Rei escatológico do povo e o Salvador do mundo, sua vida foi muito mais ordinária que a nossa. Se tivesse vivido hoje, o Natal de Jesus certamente seria muito mais simples do que a maioria dos Natais que teremos, mesmo com todas as limitações que o coronavírus tem forçado sobre nós.
Em suma, o Rei escatológico do povo e o Salvador do mundo passou por toda essa experiência que temos passado desde março. Aliás, ele sabe melhor que nós o que é viver o que temos vivido neste último ano. A questão é que Jesus não passou por tudo isso porque achou bom sofrer. Sofrer não é bom. A pandemia não é boa. Não está “tudo bem”. A ameaça de Herodes era realmente maligna. A fuga que Jesus teve que fazer para o Egito não foi nada confortável. E a morte daqueles bebês em Belém foi absolutamente catastrófica. Por que, então, Jesus viveu tudo isso?
Uma das afirmações mais profundas que Mateus faz sobre Jesus é que ele é Emanuel, Deus conosco. E o evangelista diz isso no contexto em que retrata Jesus como o cumprimento da profecia de Is 7.14. Lá no Antigo Testamento, o profeta havia anunciado a vinda de um rei que seria tão piedoso que Israel experimentaria uma nova visitação da presença divina. Mateus, porém, indica que Jesus é Emanuel, Deus conosco, no sentido mais completo possível do termo: tendo nascido de uma virgem, Jesus é o próprio Deus que se fez ser humano e habitou entre seu povo. Além de nos contar sobre todas essas situações incômodas pelas quais Jesus teve de passar, então, Mateus também nos lembra de que quem atravessa essas dores é o próprio Autor da vida. É por isso que, a despeito de todas essas situações adversas, a história da salvação continuava a ser escrita. Ainda que Jesus tivesse que fugir para o Egito, aquilo fazia parte do plano divino, de maneira que a própria vocação de Israel pudesse ser revivida perfeitamente por ele: “Cumpriu-se, assim, o que o Senhor tinha dito por meio do profeta: ‘Do Egito chamei meu filho’.” (Mt 2.15).
Eis aqui, portanto, uma verdade que toda essa situação causada pela pandemia tem nos ajudado a lembrar sobre o verdadeiro significado do Natal: quando entendemos essas experiências de Jesus à luz da encarnação, percebemos que ele passou pelo que passou para mostrar que a presença de Deus não veio nos convidar a abraçar algum tipo de visão idealista da vida. Na verdade, Emanuel, Deus conosco, veio precisamente para viver conosco, nos acompanhando inclusive em nossa perplexidade e em nosso deslocamento. E, ao permitir que experimentemos essa realidade ainda hoje, Ele nem sempre muda nossas circunstâncias. Muito mais que isso: Emanuel, Deus conosco, vem aonde estamos para manifestar sua presença até mesmo nos momentos mais ordinários de nossas vidas. O Natal é a afirmação de que Cristo fez da situação mais desconfortável da nossa caminhada um lugar sagrado onde seu amor pode se manifestar.
Não gosto do coronavírus. De verdade. Detesto quase tudo que relacionado a esse organismo: a doença, as dores, as dificuldades financeiras, a polarização política, os empecilhos na educação dos meus filhos, os desconfortos do dia-a-dia, a impossibilidade de fazer cultos presenciais como no início do ano… E detesto o fato de que a pandemia fez de mim também uma espécie de refugiado. Como diz aquela música brilhante, “desde março, eu moro no computador”.
Mas quer saber de uma coisa? Não precisamos que o coronavírus vá embora para podermos celebrar o Natal de verdade. Em Jesus, o próprio Deus passou por muita coisa muito pior que essa pandemia. E, neste exato momento, Ele está, conosco, passando por tudo isso, conosco. Lembre-se de como termina o Evangelho de Mateus. No último verso do livro, Jesus diz aos seus discípulos: “E lembrem-se disto: estou sempre com vocês, até o fim dos tempos” (Mt 28.20). Ele é Emanuel, Deus conosco. Veio para ficar e nos acompanhar até mesmo no vale da sombra da morte (cf. Sl 23.4).
Assim, o que torna o Natal extraordinário não são nossas celebrações – que, neste ano, terão de ser interrompidas ou, no mínimo, severamente limitadas –, nem tampouco as mesas enfeitadas ou as luzes decorativas. A única coisa que torna o Natal extraordinário é algo que pandemia alguma pode tirar de nós: a presença de Emanuel, Deus conosco, que se inclinou e se achegou a nós em nossa vida ordinária.
Sejamos gratos, então, mesmo nessa pandemia. Deus já nos presenteou com sua presença e jamais deixará de escrever sua história em e por meio de nós. Não é o fim. E, se possível, pense em alguém que precisa ser lembrado dessa verdade. Em um gesto singelo de gratidão a Deus, faça algo que possa recordar essa pessoa de que Jesus é de fato Emanuel, Deus conosco. O próprio Jesus precisou ser acolhido por alguém não somente em Belém, como também no Egito e em Nazaré. Isso, meus caros, é extraordinário.