Ninguém viveu a experiência de Salmo 22 como Jesus de Nazaré

Bernardo Cho
10/4/2020
Espiritualidade

Salmo 22 é um dos mais famosos clamores por socorro que encontramos em todo o Antigo Testamento. Nele, o salmista suplica por ajuda divina em uma situação de extrema adversidade, na qual se depara com a possibilidade real de sua morte.

A angústia do salmista, além de aguda, é completa. As tribulações que atravessa afetam todas as esferas relacionais de sua vida: sua percepção acerca do cuidado providencial de Deus está enfraquecida (versos 1-2), seus adversários fazem chacota de sua desgraça (versos 6-8, 12-13, 16-18), e seu vigor emocional é dissipado como vapor, diante da penúria que o acomete (versos 14-15).

Mas, até mesmo quando se vê abandonado, o salmista interpreta sua experiência à luz de seu relacionamento com Deus: “Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?” (Sl 22.1). Ou seja, ainda que sinta-se desamparado, recorre ao Senhor, que o conhece e chama pelo nome. Recorda-se, então, de que suas circunstâncias não poderiam corromper o caráter do Deus que havia feito uma aliança com seu povo: “Tu, porém, és o Santo, és rei, és o louvor de Israel. Em ti os nossos antepassados puseram a sua confiança; confiaram, e os livraste. Clamaram a ti, e foram libertos; em ti confiaram, e não se decepcionaram” (Sl 22.3-5). E, justamente porque depositou toda a sua esperança no Senhor (Sl 22.19-21), o salmista é vindicado perante seus inimigos, de maneira que seu livramento torna-se o paradigma do que Deus fará a todos aqueles que o temem (Sl 22.22-31).

A ênfase temática de Salmo 22 está em ampla continuidade com o retrato apresentado em Salmo 1. Aqueles que “louvarão o Senhor, tendo vida longa” (Sl 22.26) participarão da congregação dos justos, que são “como árvores plantadas à beira do rio” (Sl 1.3). Não é por acaso que, na longa história da interpretação do Saltério, a pessoa descrita em Salmo 22 tenha sido associada ao rei da nação, apresentado anteriormente por Salmo 2. Ambos passam por situações adversas, ambos vivem em fidelidade às promessas divinas, ambos são exaltados na presença do Senhor. (Salmos 1 e 2 formam uma introdução dupla a todo o livro e têm uma função hermenêutica importante para o restante do Saltério.) E nós mesmos podemos nos apropriar das palavras de Salmo 22, à medida que nos identificamos com o salmista, cuja experiência exemplifica a própria jornada trilhada por todo o povo de Deus.

Contudo, ninguém viveu a experiência de Salmo 22 como Jesus de Nazaré. Marcos apresenta Jesus como o representante definitivo do povo de Deus, usando um vocabulário comum ao Saltério: assim como a figura real em Sl 2.2, Jesus é chamado “Cristo” e “Filho de Deus” (e.g., Mc 1.11; 8. 29; 9.7; 14.61-62). Além disso, todos os evangelistas narram a morte de Jesus, destacando que seus sofrimentos representaram, precisamente, a plenitude do Salmo 22. No ápice de sua tribulação, Jesus também foi zombado por sua insistente confiança em Deus (e.g., Mc 15.25-32; cf. Sl 22.6-8), sentiu o choque causado pelo desgaste de seu corpo (Jo 19.28; cf. Sl 22.15) e teve sua honra pisoteada quando dividiram suas vestes e tiraram sortes por elas (e.g., Mt 27.35; cf. Sl 22.18).

A grande diferença é que, enquanto o salmista teve o privilégio de cantar sobre o livramento do Senhor quando ainda vivo, o hiato entre os versos 18 e 19 de Salmo 22 jamais foi trans-posto por Jesus no Calvário. Ele clamou por socorro divino, fazendo coro com a prece sincera do salmista – “‘Eloí, Eloí, lamá sabactâni’, que significa ‘Meu Deus! Meu Deus! Por que me abandonaste?’” (Mc 15.34) –, mas a única resposta que recebeu foi a incompreensão daqueles que assistiam à sua dor com curiosidade indiferente. “Bom, ele deve estar pedindo ajuda a Elias”, diziam alguns espectadores. “Seria interessante se isso acontecesse… Vejamos se Elias volta para socorrê-lo” (cf. Mc 15.35-36). De fato, o “ungido” do Senhor teria de permanecer morto por três dias, antes que sua súplica fosse finalmente ouvida. Ninguém viveu a experiência de Salmo 22 como Jesus de Nazaré.

Conforme nos lembramos da paixão de Cristo em isolamento social, a verdade mais urgente que podemos destacar, à luz de Salmo 22, talvez seja esta: ao reviver a história do salmista de forma plena, Cristo tomou sobre si a manifestação mais cabal do sofrimento humano e sentiu na própria pele o resultado mais profundo da maldade presente no mundo. Não há quem saiba o que é padecer como Jesus na cruz e, portanto, não há calamidade – nem mesmo a atual pandemia – a respeito da qual ele não se compadeça de nós (cf. Hb 5.1-10). E isso ele fez para que as mazelas decorrentes de nossa separação fundamental de Deus pudessem finalmente ser superadas. Ao entregar seus cuidados ao Pai, enquanto absoluta-mente abandonado na cruz, Cristo desbravou o caminho do justo com perfeição, mostrando que a herança da glória é daqueles que confiam no Santo de Israel, principalmente quando a paz desaparece do horizonte. Assim, no corpo desfigurado de Cristo, descobrimos que Deus conhece todo mal que sobrevém a nós e responde aos problemas do mundo, identificando-se com nossa situação caótica e assegurando a reversão dessa realidade por meio da fidelidade de seu Filho.

De fato, a veracidade das promessas feitas em Sl 22.19-31 é comprovada, de uma vez por todas, no terceiro dia após a morte de Jesus. Nós somos fruto disso: “Todos os confins da terra se lembrarão e se voltarão para o Senhor, e todas as famílias das nações se prostrarão diante dele, pois do Senhor é o reino; ele governa as nações” (Sl 22.27-28). Tão certo quanto a condição caída do mundo encontrou seu clímax na paixão de Cristo, a ressurreição de Jesus concretizou o reinado de Deus sobre a terra e sua vitória sobre a morte.

Antes, porém, era necessário que Cristo obedecesse até a morte, era necessário confiar até a morte. E era necessário que, após a consumação de sua morte, os discípulos passassem mais um tempo sob a densa escuridão do aparente fracasso de Jesus. Não sabemos até quando padeceremos os efeitos da pandemia. Ao que parece, ninguém está enxergando qualquer luz no fim desse túnel. Mas Deus conhece bem a nossa angústia. Deus conhece tão bem a nossa angústia que, para Ele, a nossa angústia é o solo sagrado onde a presença do Crucificado se manifesta. Podemos passar pelas incertezas, sabendo que é ele que nos acompanha até o outro lado da história.