Natal, a festa do corriqueiro
“No sexto mês Deus enviou o anjo Gabriel a Nazaré, cidade da Galiléia, a uma virgem
prometida em casamento a certo homem chamado José, descendente de Davi. O nome da
virgem era Maria” (Lc 1.26,27).
A descrição dos fatos narrados nos Evangelhos de Lucas e Mateus sobre a anunciação e o
nascimento de Jesus, dois belíssimos retratos do Natal, é desconcertante quando prestamos a
atenção em cada aspecto das narrativas. No contexto da anunciação, Lucas faz questão de
ressaltar o caráter decididamente ordinário da vida de Maria até a aparição do Anjo. Uma
moça que em nada diferençava das outras que habitavam aquele vilarejo. Aliás, o vilarejo
também revela ser um lugar comum, obscuro, mal afamado inclusive, um vilarejo de
agricultores e pessoas simples. Maria era um pouco mais que uma adolescente, já prometida
em casamento como era o uso e o costume do seu tempo, que se ocupava dos afazeres
domésticos mais triviais, sem grandes expectativas, aguardava o dia do casamento com José. E,
José, por sua vez, era uma espécie de empreiteiro modesto, um trabalhador que ganhava o
pão suado de cada dia com a sua profissão nada especial. Sua grande aspiração, quem sabe,
seria o desposar Maria e constituir uma família ordinária, mesmo sabendo ser da descendência
de Davi, sabia do seu lugar na história e no mundo, um simples carpinteiro de Nazaré. Já a
narrativa do nascimento nos faz enxergar a condição simples e humilde de Maria e José e a
hospedagem em uma estrebaria dão a medida do desamparo que sofriam por estarem tão
longe de casa, dos parentes e amigos. O presépio nos faz recordar a fala de Paulo “que sendo
rico se fez pobre por amor de vós” (2 Co 8.9). Um estábulo, seguindo a tradição, uns animais
domésticos, umas faixas, um berço improvisado, quem sabe um bocado de pão, um pouco de
azeite e não muito mais que isso. Depois, a vida como refugiados no Egito até o retorno para a
obscura Nazaré, onde Jesus cresceu indo aos sábados na Sinagoga, aprendendo o ofício do pai,
ajudando nas tarefas domésticas e convivendo e compartilhando as bênçãos e as provisões
diárias da graça com os seus irmãos por parte de mãe. O Natal nos recorda que as grandes
surpresas da graça irrompem justamente na vida corriqueira, ordinária, aquela da mesmice
de todo dia. Muitos cristãos deixam de crescer porque se sentem entediados com a ausência
de grandes aventuras, fortes emoções, feitos épicos e heroicos. Sonham com o dia que lhes
chegará a oportunidade de fazer alguma coisa que há de mudar a história, consagrar o seu
nome e sentir que valeu a pena a passagem por aqui. E nessa ansiedade e agitação, perdem o
foco do aqui e agora e desprezam os ordinários meios de graça, frequentar a igreja semana
após semana, como fala Michel Horton: “E a cada semana, nós pecadores medianos e santos
chatos nos ajuntamos em volta de pão e vinho comuns, e o próprio Cristo está ali conosco”.
Não percebem os quase invisíveis, mas jamais inexistentes, milagres do cotidiano que nos
conformam pela paciência, perseverança, rotina, abnegação e amor ao Jesus que nasceu
humilde em Belém e suportou a nossa contingência e miséria (exceto do pecado), de Nazaré
ao Calvário. Não há nada mais extraordinário e surpreendente do que cumprir a nossa rotina,
a nossa mesmice diária com a intenção de fazer tudo para que Deus seja glorificado, como
ensina Paulo: “Assim, quer vocês comam, bebam ou façam qualquer outra coisa, façam tudo
para a glória de Deus” (1Co 10.31) e ainda a resposta primeira do Breve Catecismo de
Westminster: Qual o fim principal do homem? Glorificar a Deus e gozá-lo para sempre. De fato,
tirando todo o romantismo e as narrativa hagiográficas, a vida de um missionário em um
campo hostil é admirável e merece o nosso respeito, a nossa valorização e de maneira especial
a nossa oração e todo o nosso apoio. Claro que há grande dose de heroísmo, coragem e
martírio que podem ser evidenciados nas vidas preciosas de nossos missionários em contextos
de guerras, fomes extremas, opressão política e religiosa, ninguém duvida disso. Mas, não
menos heroísmo, perseverança, coragem e amor sacrificial podem ser encontrados na vida de
uma dona de casa com três filhos pequenos, um deles com febre, outro enjoado e um terceiro
que está com cólicas. Junte-se a isso a louça sobre a pia, as roupas na máquina de lavar e o
jantar para fazer. Não há menos martírio do que suportar um marido em um dia ruim ou uma
esposa com TPM, mais o dia pesado como o descrito acima. Exercitar o domínio próprio, a
longanimidade e a amabilidade, fruto do Espírito, no dia a dia é uma tarefa acima das forças
humanas, daí a nossa necessidade dos meios ordinários de graça, leitura bíblica, vida
devocional, frequência regular e assídua na igreja e etc. O Natal nos recorda que o cotidiano
esconde e ao mesmo tempo revela o amor de Deus, sua graça e seu poder que podem
realizar o impossível em nossa vida que parece tão pobre de possibilidades.