As dores do mundo

Luiz Fernando dos Santos
12/3/2021
Etica e Política

“E assim se cumpriu o que fora dito pelo profeta Isaías: Ele tomou sobre si as nossas
enfermidades e sobre si levou as nossas doenças" (Mateus 8:17)

Entramos na terceira semana em preparação para a Páscoa da Ressurreição de Jesus Cristo.
A silhueta da cruz já desponta no horizonte e para ela convergem as dores do mundo.
Há exatamente um ano estamos vivendo um calvário planetário com essa pandemia de infinitas
dores e esses últimos meses, especialmente no Brasil, têm sido difíceis de suportar.
A pandemia deu-nos a ocasião de aprendermos muitas coisas, inclusive sobre nós mesmos.

Durante um certo tempo esteve na moda falar sobre o novo normal, um novo mundo com um
novo jeito se ser e de se relacionar durante e no pós-pandemia. Entretanto, confesso que
jamais imaginei que esse novo normal implicaria no fato que muitas pessoas se
acostumariam com o indecente e imoral número de mortos, na casa dos mil, a cada dia.

Nunca imaginei que isso seria normal assistir ao colapso do sistema de saúde e ver em tempo
real homens e mulheres morrerem indignamente sem terem ao menos a chance, o direito de
lutarem por suas vidas, por falta de leitos hospitalares, oxigênio e insumos. Confesso que
nunca passou pela minha mente que seria normal testemunhar indiferente o insano esforço
de coveiros e retroescavadeiras abrindo covas coletivas para o sepultamento ‘desacaridoso’
de entes queridos, quase sem dignidade humana.

O novo normal parece ser um tempo de anestesia cultural que faz de nós mórbidos expectadores
de um show de falta de empatia, negacionismo, indiferentismo e no fim das contas, de puro egoísmo.

Os célebres pregadores do passado como, André de Creta, Fulgêncio de Ruspe, João Crisóstomo,
Agostinho de Hipona, Bernardo de Claraval, Francisco de Assis, Lutero, William Perkins, Thomas Boston,
John Owen, Pe. Antônio Vieira, Jonathan Edward, Charles H. Spurgeon, Billy Graham, para citar apenas
alguns, quando pregavam sobre os eventos pascais de Cristo, pintavam com cores fortes,
vívidas, chocantes e até desconcertantes, a paixão, as dores, a maceração de Cristo no
calvário. Ao ouvir esses pregadores, as assembleias originais vinham às lágrimas, tinham os
seus corações compungidos, como que traspassados, feridos, havia um solene
quebrantamento e muitas conversões radicais eram testemunhadas. Além do mais, sobre
esses homens e mulheres que sofreram a ação do Espírito Santo à luz dessas maravilhosas
pregações, um espírito de sensibilidade social, empatia para com os sofredores, de amor
altruísta e abnegado, um senso urgente de missão e de desconforto com a situação geral da
igreja e do mundo se abatia sobre eles. Suas vidas eram impactadas quando consideravam as
dores de Cristo sobre a cruz e entendiam que em certa medida, a cruz sintetiza a paixão do
mundo e só o ficar indiferente a ela, já seria pecado. Hoje podemos ler esses mesmos sermões,
talvez eles sejam preciosos auxílios para despertarem em nós uma mais agudizada
sensibilidade para com a realidade do sofrimento impingido pelo pecado, aumentar em nós
um amor devotado a Cristo e uma melhor compreensão de como devemos responder à
desconcertante lógica da cruz, que é o amor.

Todavia, há uma outra maneira de nos deixar tocar pela paixão de Cristo que sofre em cada
e homem e mulher que neste mundo sofre os efeitos deletérios da injustiça, do descaso, da alienação
e por fim, o barateamento da vida e da dignidade. Se aceitarmos o conselho do brilhante teólogo Karl Barth,
ter em uma das mãos a Bíblia e na outra o jornal, seremos certamente desafiados a sair de nossa zona
de conforto autocentrada, egoísta e alienada.

Usar o mote de que a vida tem que continuar pura e simplesmente porque eu não suporto mais viver sem sair
com os amigos, frequentar rodas de confraternização, porque não vivo sem aquele período de descanso e férias.
Insistir numa normalidade de bolha como a do futebol, como se nada estivesse acontecendo ou reivindicar a
abertura de espetáculos e shows com aglomeração, porque a falta disso está levando as pessoas a desenvolverem
enfermidades psicológicas tão graves quanto a pandemia, revela muito da nossa capacidade ou entendimento do que
é viver uma vida cruciforme.

Ao olharmos para a cruz que desponta no horizonte das celebrações litúrgicas, o Evangelho nos recorda
que a vida cristã é feita de sacrifícios pessoais em benefício dos outros. As lições do calvário nos
ensinam que assim como Jesus, somos chamados a viver a nossa vida ‘outrocentradas’,
devemos ser sensíveis, empáticos, comprometidos com a dor alheia e mais, somos convocados
a empenhar a totalidade da nossa existência para com Cristo, redimir o enredo dessa história
de absurdidade e morte de uma sociedade com a consciência em rápido processo de
cauterização.