Amor mais forte que a loucura
Muitas vezes, pessoas que amamos vivenciam situações de transtorno psiquiátrico, ou dito popularmente, de “loucura”. Não patologizemos a todos, achando que “tá todo mundo louco”, como no livro “O alienista” de Machado de Assis, no qual o personagem Simão Bacamarte enxergava todos como loucos. No entanto, esta vulnerabilidade emocional/orgânica existe, e até de modo orgânico e genético, como nos casos de transtornos no espectro bipolar, psicoses e outras.
A queda humana e os padrões de pecado estão em todos nós. Às vezes algumas pessoas queridas ou até mesmo nós temos uma saúde mental frágil. Familiares, amigos, filhos, pais ou cônjuges podem ser diagnosticados com transtornos mentais. Não é preciso ficar com vergonha ou escondermos, somos todos amados por Deus nas nossas deficiências. Realisticamente, nestes casos, a doença precisa ser encarada, e a atitude inicial mais natural dos familiares é a negação ou o desespero. Não precisamos reagir assim, mas podemos ser realistas com esperança, mesmo nos casos mais graves. Tenho percebido o altíssimo nível de sofrimento psíquico que vivenciam tanto aqueles que vivenciam o transtorno mental quanto daqueles que os amam.
Umas das novas perspectivas em teologia nos últimos anos tem sido a “teologia da deficiência”, a reflexão de nossa fé sobre tudo aquilo que envolve a nossa fragilidade humana, tanto física quanto psíquica. Também o debate atual na psicologia e na psiquiatria sobre como tratar pessoas com transtornos mentais está na ordem do dia. As opiniões se polarizam: alguns preferem a internação nos hospitais psiquiátricos em casos necessários; outros são contra a internação e enfocam a medicação apropriada em casa.
A igreja – como comunidade de fé e cuidado, comunidade terapêutica - pode e deve começar a refletir sobre como atender a situações de adoecimento psíquico e como ajudar as famílias a responderem esta questão. Historicamente, por um lado, alguns cristãos rejeitaram a medicação e os tratamentos psiquiátricos como se eles fossem “não espirituais” e, portanto, desnecessários; infelizmente, nega-se nossa humanidade e necessidade de ajuda “secular”. Nega-se também o fato de que Deus deu ao ser humano a capacidade de produzir remédios. Apesar destas negações, as ciências são como uma participação no potencial criativo de Deus: remédios, apesar de limitados (pois não nos dão um novo corpo, como o será na ressurreição final!), podem ser considerados presentes de Deus para nos ajudar enquanto esperamos pelos corpos glorificados, se forem ajustados e administrados corretamente. Por outro lado, alguns só focam na medicação e esquecem que é necessária a dimensão da fé, do amor e da esperança, de uma comunidade que acolha radicalmente os queridos com transtorno mental. Os remédios também não resolvem sozinhos, pois muitas vezes é necessário tanto acompanhamento psicológico quanto uma igreja que nos acolha na fragilidade das nossas depressões, manias e loucuras.
Quando vamos a um hospital psiquiátrico, percebemos que grande parte dos internos são cristãos. Muitos têm profunda sede de Deus. Querem um amor mais forte que a loucura. Diante da vulnerabilidade, os deficientes nos mostram o quanto todos somos dependentes, vulneráveis e temos sede de Deus. Certamente aqueles que vivenciam de perto o transtorno mental podem aprender profundamente o caminho da misericórdia. É gente que sofre, mas continua amando; e assim começam a reconhecer em si mesmos um caráter cristão mais profundo e descobrem existencialmente o que significa bondade e graça. Para os portadores de transtorno mental, aprende-se de maneira dramática o que é viver diante do ‘vale de da sombra da morte’ e mesmo assim não temer; alguns vivenciam melhoras que parecem mais experiências de ressurreição. Parecem como uma volta à vida quando tudo parecia perdido. Tinham sobre eles a sentença de morte, mas aprendem a não confiarem em si mesmos, mas em Deus, que ressuscita os mortos (2 Co 1.9). Participam de alguma forma de aflições como as do crucificado, mas também existe a possibilidade de ressurreição que se assemelha com a de Cristo.
Para seus familiares, neste processo, se não abortarem o amor, a fé e a esperança, mas cultivarem um realismo esperançoso, o caráter vai sendo transformado e aprendem a amar incondicionalmente, como Cristo os ama. Este amor incondicional dos familiares não significa uma ausência de limites físicos e psicológicos, mas a afirmação do cuidado e amor mesmo diante das próprias limitações. Este reconhecimento do limite nos leva tanto à oração (pois Deus é quem melhor cuida dos nossos amados) quanto também à possibilidade de nos maravilharmos com o suporte de outras pessoas. Muitas vezes amigos e familiares reconhecem o drama e sofrimento da família nuclear, e inesperadamente demonstram serviço e misericórdia, carregando os fardos pesados como amigos mais chegados que irmãos.
Precisamos enxergar a doença mental a partir do que a graça de Deus já fez e ainda vai fazer em nós. A graça sempre nivela a todos “por baixo”, mas nos coloca de pé. Diante dos dramas mais difíceis, afirmamos a pequena ponta de esperança que temos e caminhamos. A igreja é o lugar em que sustentamos este posicionamento. Por causa de Jesus, o amor ainda continua sendo mais forte que a loucura. Esperamos o dia em que seremos, em Cristo, transformados e permaneceremos sãos e santos. Lá não haverá dor, nem pranto; os transtornos mentais faziam parte das primeiras coisas. Na nova cidade de Deus viveremos graça, saúde, verdade e alegria em plenitude.