Acene tchau tchau para a câmera - Umberto Eco

Bernardo Cho
15/8/2019
Devocional

À medida que eu me torno consciente do aquecimento global e do desaparecimento da primavera e do outono, e encontro a confirmação de tais fenômenos em vários escritos competentes, pergunto-me como o meu neto, que ainda não completou dois anos de idade, reagirá no dia em que ouvir a menção da palavra “primavera” ou ler na escola um poema descrevendo os primeiros momentos langorosos de outono. Como será que ele reagirá, no futuro, ao som de As Quatro Estações de Vivaldi? Talvez ele viva em outro mundo, ao qual estará completamente acostumado, e não sentirá falta da primavera ao ver bagas sendo formadas em dias quentes de inverno. [...]

E será que essa criança achará normal viver num mundo onde a virtude suprema é ser visto – valor que é mais importante hoje do que o sexo ou o dinheiro? Um mundo em que as pessoas estarão dispostas a fazer qualquer coisa para serem vistas na televisão – ou no que tiver substituído a televisão –, a fim de serem reconhecidas pelos outros e não vegetarem num terrível e insuportável anonimato. Um mundo em que, cada vez mais, mães respeitáveis estarão dispostas a recontar os mais sórdidos causos familiares em transmissões midiáticas sentimentalistas, a fim de serem reconhecidas no dia seguinte no mercadinho do bairro e distribuírem autógrafos. [...]

Alguém no futuro explicará, então, a essa criança – além de lições sobre os reis de Roma e sobre a queda de Berlusconi, ou sobre filmes intitulados Era Uma Vez a Fiat – como, desde os primórdios da antiguidade, os seres humanos têm buscado o reconhecimento daqueles que os cercam. […] Pois os seres humanos, para que sejam conhecidos, precisam saltar aos olhos do outro, e, quanto mais são reconhecidos – ou quanto mais acham que são reconhecidos –, mais pensam que são amados e admirados por esse outro.

E, se em vez de apenas um outro, houver cem ou mil outros, ainda melhor. As pessoas sentem-se satisfeitas. E, assim, em uma era de grande e incessante movimento, quando as pessoas deixam seus vilarejos e perdem seu senso de lar, e o outro é alguém com quem eles se comunicam pela internet, parecerá natural que os seres humanos busquem ser reconhecidos de outras maneiras e que a praça do vilarejo seja substituída pela audiência global da transmissão televisiva – ou por seja lá o que vier depois.

Mas, talvez, nem mesmo os professores ou as professoras – ou as pessoas que tiverem tomado o lugar dos professores e das professoras – se lembrarão de que, em épocas passadas, havia uma distinção rígida entre ser famoso e estar na boca do povo. Todo mundo desejava ser famoso por qualidades como, por exemplo, ser o melhor arqueiro ou o dançarino mais refinado, mas ninguém desejava estar na boca do povo por ser o maior corno do vilarejo, um impotente ou uma meretriz. [...]

No mundo do futuro, porém, se houver qualquer semelhança com o atual estado das coisas, esta distinção terá sido perdida. As pessoas farão qualquer coisa para “serem vistas” ou “estarem na boca do povo”. Não haverá qualquer diferença entre a fama de um grande imunologista e aquela de um homem que matou a sua própria mãe com um machado, [...] entre a pessoa que fundou um leprosário na África Central e o homem mais bem-sucedido em sonegar impostos. Cada detalhe será útil, se tão somente as pessoas puderem ser vistas e reconhecidas, no dia seguinte, no mercadinho do seu vilarejo ou na fila do banco. […]

Talvez a criança a quem me refiro tornar-se-á seguidora de um novo grupo, cujo propósito será ocultar-se do mundo, exilar-se no deserto, retira-se num mosteiro, retomar a dignidade do silêncio. Afinal, este tipo de coisa já ocorreu antes na história, no final de uma era em que os imperadores nomeavam seus próprios cavalos senadores.

(Trecho traduzido de Umberto Eco, Chronicles of a Liquid Society [New York: Mariner, 2016], 19–21.)