A sabedoria e o desejo por um coração puro

Bernardo Cho
20/12/2019
Devocional

“Meus irmãos, considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações, pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança. E a perseverança deve ter ação completa, a fim de que vocês sejam maduros e íntegros, sem lhes faltar coisa alguma. Se algum de vocês tem falta de sabedoria, peça-a a Deus, que a todos dá livremente, de boa vontade; e lhe será concedida. Peça-a, porém, com fé, sem duvidar, pois aquele que duvida é semelhante à onda do mar, levada e agitada pelo vento. Não pense tal pessoa que receberá coisa alguma do Senhor, pois tem mente dividida e é instável em tudo o que faz.” (Tiago 1.2-8, NVI)

Sempre que leio a Epístola de Tiago penso, imediatamente, em All You Need Is Love, dos Beatles. A música fala sobre a capacidade, quase mágica, que o amor (supostamente) tem de tornar infinitas as possibilidades diante de nós. “Não há nada que você queira fazer que não possa ser feito, e não há ninguém que você possa salvar que não possa ser salvo,” porque o amor resolve tudo. All you need is love. All you need is love. All you need is love, love. Love is all you need.

Em grande medida, esse clássico dos anos 60 ainda expressa bem a maneira como muita gente pensa hoje. Quem aqui já não se cansou de ouvir frases de efeito mercantilizando o amor como a grande panaceia do nosso tempo, como se as muitas definições que as pessoas projetam sobre a virtude do amor fossem autoevidentes e nada contraditórias? No final do dia, temos de admitir que a maioria ainda concorda com John, Paul, George e Ringo: o mundo seria um lugar melhor, se tão somente tivéssemos mais amor e menos couve-de-bruxelas.

Se estivesse vivo, porém, o meio-irmão de Jesus discordaria.

Um dos propósitos centrais da carta escrita por Tiago é soletrar para os seus leitores o que deve caracterizar uma vida boa, relevante e com sentido, no contexto das injustiças presentes em um mundo que é hostil àqueles que creem no evangelho. Por meio de um estilo brusco e direto, semelhante à articulação musical do staccato, Tiago insiste, sem muitos rodeios, que ser discípulo de Jesus significa adotar hábitos concretos que expressam o senhorio de Cristo sobre todo o cosmo. É por isso que a característica mais óbvia desta epístola são os conselhos práticos que Tiago dá para uma vida piedosa.

E qual é a primeira coisa que Tiago destaca como fator essencial para se viver uma vida plena? É muito interessante que o meio-irmão de Jesus comece a lidar com essa questão, lembrando os seus leitores de que a caminhada cristã necessariamente envolve passar por dificuldades: “considerem motivo de grande alegria o fato de passarem por diversas provações” (1.2). Com isso, percebemos que uma vida boa, relevante e com sentido – uma vida plena, que a ressurreição de Jesus nos oferece – é regada de doses cavalares de realismo. A ideia fantasiosa de que Cristo nos blinda dos problemas do mundo, aliás, é precisamente o que nos impede de experimentar a qualidade de vida que Deus oferece ao Seu povo.

A questão é que essa dose cavalar de realismo, que o evangelho injeta em nós, nos faz perceber também a realidade a despeito das tribulações. Se, por um lado, viver uma vida plena começa no reconhecimento de que o senhorio de Cristo não nos blinda das adversidades do mundo, por outro lado, viver uma vida plena começa também no reconhecimento de que o senhorio de Cristo muda toda nossa perspectiva em relação a essas adversidades. Ora, a promessa que Deus nos faz no evangelho é a de que herdaremos a glória do próprio Cristo (cf. Filipenses 3). Isso significa que, graças a Jesus, o que nos aguarda no final da história é o seu caráter, a sua vida incorruptível: assim como ele é, nós seremos também. E, a partir do momento em que temos essa realidade em mente – e a de que Cristo já está assentado sobre o trono do universo, reinando sobre todas as coisas –, passamos a entender que absolutamente todas as circunstâncias pelas quais passamos, inclusive as tribulações, servem de matéria-prima para Deus nos preparar para a herança que receberemos na ressurreição.

É por isso que a primeira coisa que Tiago faz em sua carta é exortar os seus leitores a considerarem motivo de grande alegria – ou, talvez melhor, “no todo, alegria [pasan charan]” – o fato de passarmos por adversidades de todos os tipos. Não porque as adversidades são boas em si mesmas, mas, sim, porque as adversidades produzem um fruto eterno naqueles que enxergam o mundo pela perspectiva do senhorio de Jesus: “pois vocês sabem que a prova da sua fé produz perseverança. E a perseverança deve ter ação completa, a fim de que vocês sejam maduros e íntegros, sem lhes faltar coisa alguma.” (1.3-4). Uma vida plena, portanto, começa no reconhecimento de que nada pode tornar a nossa vida melhor, mais relevante ou mais significativa do que crescermos na maturidade e na completude do caráter de Jesus.

Para que vivamos segundo essa ótica, no entanto, é imprescindível que enxerguemos toda a realidade através de uma lente específica, que nos ajuda a discernir como Deus nos chama a responder em cada situação. E essa lente não é o amor. Na verdade, segundo a lógica das Escrituras, só conseguimos entender como o amor deve se expressar concretamente, quando, antes de tudo, vestimos uma outra lente. Essa lente a que estamos nos referindo chama-se sabedoria.

Mas, afinal, o que é sabedoria? Sabedoria não é o mero acúmulo de informação teórica. Segundo as Escrituras, sabedoria é a capacidade de viver segundo o caráter de Deus, de maneira concreta, nas mais variadas estações e circunstâncias da vida. Em outras palavras, sabedoria é aquilo de que eu e você necessitamos, desesperadamente, em todos os momento, para vivermos vidas boas, relevantes, plenas e com sentido. Assim, segundo Tiago, all we need is wisdom – tudo que nós precisamos é de sabedoria.

A centralidade da sabedoria se faz nítida pela maneira como Tiago usa o termo “faltar” nos versos 4 e 5: “sem lhes faltar coisa alguma” e “se algum de vocês tem falta de sabedoria”. Ou seja, as tribulações têm o potencial de nos moldar de tal maneira que “não nos falte nada”, mas, “se nos falta sabedoria”, nos falta a própria lente que nos ajuda a enxergar a obra que Deus está realizando em nós por meio das tribulações. Consequentemente, se nos falta sabedoria, nos falta tudo. Tiago afirma, porém, que o próprio Deus deseja conceder a nós essa sabedoria: “peça-a a Deus, que a todos dá livremente, de boa vontade” (1.5). A ideia no texto grego (haplōs kai mē oneidizontos) é a de que Deus está determinado a conceder essa sabedoria generosamente a todo aquele que pedir por ela.

E é neste ponto que a passagem introdutória de Tiago coloca uma questão bastante urgente para nós. Se o que caracteriza uma vida plena é o entendimento de que não há nada mais importante do que crescermos à maturidade de Cristo, e se é a sabedoria de Deus que nos ajuda a discernir claramente como Deus está realizando esse crescimento em nós, por que é que muitos de nós temos tanta dificuldade de enxergar a vida pela perspectiva do senhorio de Jesus?

O problema é que alguns de nós pedem a Deus pela capacidade de viver uma vida plena, mas não recebem essa capacidade como deveriam – ainda que Deus seja o primeiro a querer conceder essa capacidade –, porque tais pessoas pedem sem fé, sem confiança (cf. 1.6-8). Como assim? Ora, essa falta de fé diz respeito, principalmente, à falta de confiança na própria sabedoria de Deus. Ou seja, alguns de nós pedem a Deus por sabedoria e não a recebem como deveriam, porque, no fundo, elas não confiam que a sabedoria de Deus é de fato perfeita. Elas pedem pela capacidade de viver uma vida com sentido, mas, no fundo, desejam que Deus faça as coisas do jeito delas. É isso que Tiago quer dizer com o imperativo “peça por sabedoria, porém, com fé, sem duvidar” (1.6). Aqui, o foco da fé não repousa sobre o ato de pedir por sabedoria, mas sobre a própria sabedoria de Deus.

Isso se confirma pela metáfora que Tiago usa, das ondas de um mar em ressaca, para descrever a pessoa que pede a Deus por sabedoria sem confiar. Essa pessoa, Tiago continua, “tem mente dividida” – ou, conforme o termo grego dipsychos permite, sofre de dupla personalidade (1.8). Notamos, assim, um forte contraste entre a pessoa que não confia na sabedoria de Deus e o caráter do próprio Deus que é perfeitamente sábio: enquanto Deus está totalmente inclinado a nos dar sabedoria é o nosso coração dividido que nos impede de receber essa sabedoria. A única coisa que nos impede de viver uma vida plena, portanto, é o nosso próprio coração dividido.

Mas a boa notícia é que, ainda assim, Deus deseja conceder sabedoria ao Seu povo. “Toda boa dádiva e todo dom perfeito vêm do alto, descendo do Pai das luzes, que não muda como sombras inconstantes” (1.17). É necessário que entendamos, porém, que pedir por sabedoria é, antes de tudo, pedir por um coração puro, que não é dividido.