A IMPORTÂNCIA DA PREGAÇÃO EXPOSITIVA AO LONGO DA HISTÓRIA
Encontramos ao longo da história a relevância da pregação expositiva, fiel das Escrituras. Um bom exemplo disso no Antigo Testamento está em Neemias, capítulo 8. Conforme o verso 1º, era o sétimo mês judaico, que corresponde ao nosso mês de setembro, ocasião para festas religiosas, mês do Dia da Expiação e da Festa dos Tabernáculos. A cada sete anos os judeus paravam suas atividades para estudar integralmente a lei do Senhor. O povo estava obedecendo ao que Deus havia ordenado através de Moisés em Deuteronômio 31.9-13. Relata o texto de Neemias que o povo se reuniu como um só homem para ouvir a lei de Moisés, lida pelo escriba Esdras (v.1). O escriba era uma espécie de secretário perito em livros, tecnicamente treinado na lei de Deus, com a finalidade de ensiná-la. E de um púlpito de madeira Esdras realizou o seu trabalho (v.4).
O verso 8 do texto narra o seguinte: “Leram no livro, na Lei de Deus, claramente, dando explicações, de maneira que entendessem o que se lia”. A interpretação mais natural dessa passagem é a de que foi o próprio Esdras quem leu e explicou o texto (1). A idéia de “explicar claramente” o texto é a de torná-lo distinto ou separado. Além de Esdras traduzir o texto do hebraico para o aramaico, provável dialeto falado naquela época em Israel, o texto era explicado ao povo que se reunia para aprender de Deus.
Dentre alguns exemplos do Novo Testamento sobre a pregação ser Palavra de Deus pode-se registrar o ministério do apóstolo Paulo, com seu zelo e preocupação em expor o texto sagrado. O livro de Atos salienta que Paulo fazia questão de pregar a Cristo nas sinagogas (At 9.20; 17.17; 18.19), e também nas praças (At 17.18). O apóstolo não apresentava suas próprias elucubrações; não apresentava um discurso puramente filosófico; mas apresentava Cristo através das Escrituras, como se depreende de Atos 17.2, pois esta é a mensagem que pode regenerar verdadeiramente os corações.
Ao longo da história da Igreja, mesmo após o fechamento do cânon, também se podem destacar outros exemplos de que a pregação fiel é Palavra de Deus. A seguir serão apresentados certos contextos da história em que alguns pregadores fiéis se levantaram.
Segundo MaCarthur, no período da igreja cristã antiga, 100-476 d.C., a pregação expositiva entrou em desuso pelo fato da liderança da igreja preferir a filosofia grega aos princípios bíblicos. As preleções não tinham por base as Escrituras, e sim a filosofia. Os sermões eram informais e muito mais avaliados pela oratória do pregador do que por sua fidelidade ao texto sagrado. Daí o uso de alegorias (2).
Conforme Broadus, a pregação leiga era bastante comum. O trabalho laico sempre foi de fundamental importância para o desenvolvimento da igreja. Entretanto, quando um erudito era convertido, ele se colocava diante da congregação e pregava sem se preocupar com um estudo preparatório. O problema destacado aqui é o descuido para com um estudo sério das Escrituras. Mesmo diante de condições intelectuais necessárias para um estudo profundo da Bíblia, preferia-se ter meramente a oratória e a imaginação como base para a exposição do texto sagrado a se fazer uma exegese correta. (3) Exceção a essa prática era Crisóstomo, que expunha a Bíblia verso por verso, sendo conhecido como “boca de ouro”, e tinha um ministério coerente com o seu chamado. (4)
No período da Idade Média (476-1500 d.C.) boa parte dos pregadores continuou usando o método alegórico, que consiste em espiritualizar o texto, ignorando as regras hermenêuticas, praticando uma interpretação livre dos textos. Contudo, alguns pregadores, como John Wyclif (1330-1384), rechaçaram este método, abrindo caminho para a posterior Reforma Protestante. (5)
O período da Reforma teve por base o princípio da centralidade da Bíblia, destacando a necessidade e importância de uma exposição fiel do texto sagrado. Princípios como Sola Deo Gloria, Sola Gratia e especialmente Sola Scriptura foram fruto de um estudo profundo da Bíblia. Martinho Lutero, por exemplo, se converteu em meio a seus esforços para aprender e expor o texto bíblico. (6)
Calvino, por sua vez, relutou em aceitar o chamado divino para ser pregador. Ele sabia que transmitir a Palavra de Deus era um grande privilégio, mas tinha consciência, também, de que era uma grande responsabilidade. É nesse sentido que D’Aubiné relata o seguinte a respeito do reformador:
Diversos cidadãos de Orleans abriram suas casas para ele, dizendo: “Venha e ensine abertamente sobre a salvação do homem”. Calvino esquivou-se. “Não perturbem minha tranquilidade”, e ele respondeu: “deixem-me em paz” ... Mas essas almas, sedentas pela verdade, não desistiram tão facilmente. “Uma resposta das trevas!”, replicaram os mais calorosos; “uma paz ignóbil. Vem e prega!”. Calvino lembrou as palavras de Crisóstomo: “Embora mil pessoas venham a chamar-te, pensa nas tuas fraquezas, e só obedece sob constrangimento”. “Pois bem, então, nós te constrangemos”, responderam seus amigos. “Ó Deus! O que queres de mim?’ Calvino exclama nesses momentos.“Por que me persegues? Por que me conturba, sem nunca me dares descanso? Por que, contrariando a minha vontade, me colocas em evidência...?” Calvino desistiu, entendendo que era seu dever proclamar o evangelho.(7)
A princípio o reformador relutou em aceitar o chamado de ser pregador, mas depois foi convencido a aceitá-lo.
O conceito calvinista e reformado acerca da natureza da pregação é derivado do conceito reformado de Palavra de Deus, que é o seguinte: A Bíblia é a Palavra escrita; Cristo é a Palavra encarnada; a Santa Ceia é a Palavra representada e a Pregação é a Palavra proclamada. (8)
A pregação deve conformar-se ao texto sagrado. Citando Calvino, Parker considerava que a atividade primordial do pastor é expor com simplicidade e fidelidade as Escrituras, sendo voz de Deus. Daí o reformador ter exclamado: “Não usem alegorias fantasiosas. O pregador é o servo da mensagem”. (9)
Martinho Lutero, por sua vez, considerava a pregação como o trabalho mais importante do mundo.(10) Em relação ao culto público, por exemplo, ele chegou a dizer que a pregação da Palavra é mais importante que sua leitura, devido ao contexto em que ele vivia, que não tinha as Escrituras como centro do culto. (11) Por mais fiel que seja o pregador, ele é passível de erro. A Bíblia, por outro lado, é inerrante. As Escrituras são inspiradas, o pregador não.
Entretanto, não há dúvidas de que a leitura e exposição das Escrituras devem estar no centro do culto público. Toda liturgia deve estar baseada na mensagem pregada. Os cânticos e as orações têm sua importância fundamental no culto público, mas a pregação é que deve orientar cada parte da liturgia, de modo que a leitura e exposição do texto bíblico sejam o clímax da adoração pública. Enquanto no Antigo Testamento os sacrifícios, que apontavam para Cristo, eram o centro do culto, no Novo a pregação é o centro. Os sacrifícios apontavam para Cristo, que agora é proclamado através das Escrituras.
Tratando ainda de seu pensamento a respeito da pregação, em um documento intitulado “O Direito e Autoridade de uma Assembléia ou Comunidade Cristã de Julgar toda Doutrina, Chamar, Nomear e Demitir Pregadores – Fundamento e Razão da Escritura”, que Lutero elaborou em resposta ao pedido de orientação da comunidade de Leisnig sobre como organizar uma igreja, ele afirmou “que a comunidade cristã deve ser reconhecida, sem sombra de dúvidas, na pregação do Evangelho puro”. (12) Então, diante da natureza da pregação, é importante que os pregadores sejam claros a todas as pessoas e valorizem tanto sua vida acadêmica como a espiritual.
É por causa dessa idéia de pregação que hoje temos Bíblias abertas nos púlpitos de muitas igrejas reformadas. Essa prática teve início no século 16 e teve também certa ênfase no movimento puritano, simbolizando a importância das Escrituras no culto público.
Do período moderno podem-se destacar alguns pregadores puritanos como John Hall (1574-1656), Thomas Goodwin (1600-1680), Richard Baxter (1615-1691) e John Owen (1616-1683). Todos esses tinham um profundo senso da presença de Deus, expondo o texto sagrado sob a premissa de que a pregação fiel é voz de Deus. (13)
Ao longo da história da igreja os expositores fiéis ao texto bíblico foram a minoria. Contudo, o Senhor sempre levantou homens fiéis à sua Palavra, que entendiam a importância de se expor o texto sagrado para se conhecer a vontade divina, sendo instrumentos para a conversão de almas e a edificação da igreja de Cristo, como voz de Deus.
(1) KIDNER, Derek. Esdras e Neemias Introdução e Comentário. São Paulo: Edições Vida Nova, p. 116.
(2) MaCARTHUR, Juan, Jr. El Redescubrimento de la Predicación Expositiva. Barcelona: Editorial Caribe,1996, pp. 60-61.
(3) BROADUS, John, A. Historia de la Predicacion. El Paso: Casa Bautista de Publicaciones, pp. 39-40.
(4) Ibid, p. 62.
(5) Ibid, p. 63.
(6) Ibid, p. 64.
(7) D’AUBINÉ, M. The Reformation in the time of Calvin vol.2. Rapidan: Hartland Publication, 1999, p. 36 [Tradução Minha].
(8) ANGLADA, Paulo. Vox Dei:A Teologia Reformada da Pregação. In: Fides Reformata, vol. IV. São Paulo: CPAJ, 1999, p. 147.
(9) PARKER, T.H. Calvin´s Preaching. Westminster: John Knox Press, 1992, p. 35.
(10) LUTERO Apud. LOPES, Hernandes, D. A Importância da Pregação Expositiva Para o Crescimento. São Paulo: Candeia, 2004, p. 48.
(11) LUTERO Apud. FANT, C.E. 20 Centuries of Great Preaching. In: Encyclopedia of Preaching vol.2. Waco: Word Books, 1971, p. 9.
(12) LUTERO, Martinho. Obras Selecionadas vol.7. São Leopoldo, Editora Sinodal, 2000, p. 28.
(13) MaCARTHUR, John. Rediscovering Expository Preaching. Dallas: Word Publishing, 1992, p. 52.